Canguçu, sexta-feira, 22 de novembro de 2024
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Dom Jacinto Bergmann: O sentido da vida ainda é possível?

Nas minhas leituras nestes últimos dias chuvosos, mais uma vez deparei-me com a seguinte parábola do filósofo niilista Friedrich Nietzsche: “Não ouviram falar daquele homem louco que em plena manhã acendeu uma lanterna e correu ao mercado, e pôs-se a gritar incessantemente: – ‘Procuro Deus! Procuro Deus!’? E como lá se encontrassem muitos daqueles que […]


Nas minhas leituras nestes últimos dias chuvosos, mais uma vez deparei-me com a seguinte parábola do filósofo niilista Friedrich Nietzsche: “Não ouviram falar daquele homem louco que em plena manhã acendeu uma lanterna e correu ao mercado, e pôs-se a gritar incessantemente:

– ‘Procuro Deus! Procuro Deus!’? E como lá se encontrassem muitos daqueles que não criam em Deus, ele despertou com isso uma grande gargalhada.

– ‘Então ele está perdido?’ perguntou um deles.

– ‘Ele se perdeu como uma criança?’ disse um outro.

– ‘Está se escondendo? Ele tem medo de nós? Embarcou num navio? Emigrou?’

– gritavam e riam uns para os outros. O homem louco se lançou para o meio deles e trespassou-os com seu olhar.

– ‘Para onde foi Deus?’ gritou ele; ‘já lhes direi: nós o matamos, vocês e eu; somos todos seus assassinos!’”

Niilismo e a questão do Sentido da Vida vão juntos. Claro, a questão do Sentido da Vida é uma questão que pertence a todos. Ela aparece, contudo, de maneira mais premente, nas sempre mais pessoas tidas como “cultas” – considerando-se “pós-modernas autênticas”. São elas que sentem essa questão com agudeza e pathos, com dramaticidade, se não tragicidade. Por que? Porque, em virtude de sua visão imanentista e secularista da vida, os “cultos pós-modernos pretensamente autênticos”, já não dispõem, hoje, um código próprio, quer natural, quer humano, quer religioso, que lhes permita responder adequadamente a esta questão.

Para a grande maioria atual dos “cultos pós-modernos pretensamente autênticos”, a vida, como um todo, não vale a pena. Ensinam, então, que temos que conviver com o vazio da existência, que não resta alternativa senão aguentar o absurdo da vida. Procurar um sentido global na amizade com a criação (conectividade), no amor ao próximo (alteridade) e no amor a Deus (religião), é, para eles ilusão e fuga. Não há o que fazer: a vida é assim mesmo! Então resignam-se ao absurdo e se instalam no vazio.

Efetivamente, para muitos “cultos pós-modernos pretensamente autênticos”, não haveria mais nem a criação (sem conectividade) nem o próximo (sem alteridade) nem Deus (sem religião). Eles dispensam a relação com a criação, com o outro-irmão e com o Outro-Deus, para ater-se a simples realidades materiais desse mundo. Não haveria mais qualquer “Grande Coisa” necessária para tocar a vida adiante. A questão do Sentido da Vida seria um logro.

O que importa seria “desesperar da felicidade”, sempre inatingível, para poder gozar, então, a “beatitude” do presente, a única acessível. O que sobra, pois, como proposta existencial, é a mediocridade. É claro, se a visão da vida é pequena, o ideal de vida será também pequeno. Ora, esse horizonte de vida estreito, que até ontem se julgava típico dos “pequeno-burgueses”, tornou-se na modernidade tardia, a conduta das “classes imanentistas e secularistas”, dos “cultos pós-modernos pretensamente autênticos”.

Mas um ideal de vida desse gênero, privado que está de uma Fonte Superior de inspiração, se esvazia necessariamente no niilismo. De fato, ele não tem como evitar o destino anulador de tudo, que é a morte. Niilismo é, pois, no fundo, a filosofia de vida da elite “culta pós-moderna pretensamente autêntica”, e por influência desta, até certo ponto da sociedade como um todo.

Seja como for, há que reconhecer que um ideal de vida limitado a este mundo puramente imanente e secularista é, no fim, insustentável, pois é impossível ao coração humano renunciar a busca da plenitude humana. Esta, pertence à natureza da criatura humana criada “à imagem e semelhança do Deus-Criador”, e, se enraíza, portanto, no estatuto metafísico do homem, enquanto ser contingente, portanto, um ser ontologicamente vinculado ao Ser necessário. Por isso, concluiu o filósofo, Clodovis Boff:

“É somente a preço de um processo perverso de absolutização, tal como sucede no caso das ideologias totalitárias, que causas terrenas podem preencher o coração humano, mas sempre por pouco tempo e de modo enganoso”. É, pois, em vão que os “cultos pós-modernos pretensamente autênticos” querem se desfazer de quaisquer absolutos e viver ut si nullus deus daretur – como se nenhum deus fosse dado.

Fica a pergunta pontual: Por que a razão tardo-moderna recusa a Fonte da qual tudo jorra? Também fica uma resposta pontual: Por duas falhas, ambas de caráter moral: primeiro, por desconfiança na razão; segundo, por recusa à luz da verdade (mas isso, já é assunto de uma próxima reflexão).

A reflexão por ora é: O Sentido da Vida ainda é possível? Ou já nos entregamos ao niilismo que leva ao absurdo de vida?

Dom Jacinto Bergmann, Arcebispo Metropolitano da Igreja Católica de Pelotas.