Canguçu, sexta-feira, 22 de novembro de 2024
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Marco Vinício Pereira: Sobre as taperas e o humano em movimento

Pela janela de nossa cozinha enxergávamos ao longe uma casa velha, já tapera há muitos anos. Naquelas paredes simples e sem reboco, já havia frestas grandes por onde dava pra espiar seu interior vazio e escuro, o telhado abaulado, aos poucos cedia. As pedras do alicerce se desprendiam uma a uma, rolavam, e lentamente eram […]


Pela janela de nossa cozinha enxergávamos ao longe uma casa velha, já tapera há muitos anos. Naquelas paredes simples e sem reboco, já havia frestas grandes por onde dava pra espiar seu interior vazio e escuro, o telhado abaulado, aos poucos cedia. As pedras do alicerce se desprendiam uma a uma, rolavam, e lentamente eram cobertas pelo grama. Aquele lugar pra mim era uma pintura envolta numa moldura de silêncios, eu gostava de andar por ali. Menino que era, eu adorava garimpar os vestígios dos antigos moradores; um chinelo velho, uma garrafa de vidro, quem sabe algum brinquedo das crianças que por ali cresceram.

Alguém viveu naquele lugar, cultivou uma horta, teve cachorros, e daquela porta, cujo marco desprendia da parede, abanavam para os conhecidos que desciam pela estrada. Receberam ali visitas, acalentaram amores, a casa velha ao longo dos anos abrigou sonhos e sofrimentos, resguardou das intempéries as gentes que ali viveram até o dia da mudança. Por fim se foram, tal como eu menino me fui, deixei para trás os terreiros onde brincava e rumei para outras procuras.

Mudar-se, é um alento pra os cansados da rotina, para os enfadados dos caminhos que conduzem sempre aos mesmos lugares. Quem se mudou sabe como é interessante o momento da chegada à casa nova, ao arrumar as caixas percebemos quantas coisas inúteis acumulamos nas gavetas, e, ao mesmo tempo em que organizamos nossas coisas neste novo espaço, também organizamos nossos anseios. É o momento ideal pra deixar de lado os velhos hábitos e planejar uma nova etapa. Os dias que se seguem, são dias de novidade. Uma janela aberta nos faz enxergar um novo recorte do mundo ao qual a nossa vista ainda não acostumou, de certo modo voltamos a perceber as coisas. Neste sentido, mudar-se amigos, é recuperar aquele hábito da criança, qual seja, o de ver o mundo como novidade.

O ser humano carrega em si algo de itinerante, de nômade, e isso meu caro leitor, é uma das nossas mais valorosas características. Um exemplo curioso nos vem da História; O povo Maia por volta de 850 d.C., após séculos de prosperidade e vida organizada em cidades, começou a abandoná-las, uma após a outra. Um povo inteiro que se pôs em marcha, um povo inteiro que se mudou. As teorias sobre as causas dessa mudança são várias; Secas, declínio econômico, etc. Ou, permitam-me conjecturar, será que não teriam eles se cansado, e ao abandonar suas cidades buscavam uma nova forma de estar no mundo, de sentirem-se vivos? Quem sabe, já cansados dos mesmos cheiros, ares, e caminhos, buscavam o novo e o fizeram partindo em direção a horizontes distantes. É nessa busca por movimento, nesse anseio nômade que se realça para mim com um dos traços humanos mais elementares e belos.

O que parece ser subjacente ao hábito de mudar-se, é essa busca pelo movimento em si, quer seja no encalço de oportunidades, quer seja motivado por lazer, aventura, emoção, em fim, nos mudamos, saímos em busca de um novo lar e de uma versão renovada de nós mesmos. Mudamo-nos, para traz fica nossa casa velha, que muito provável, tornar-se-á a casa nova de alguém. Irmanamo-nos assim, numa incessante caminhada, os rastros se cruzam, se encontram e se separam. Nesta itinerante senda humana, se há uma coisa que nos une, é o desejo de andar. E aqui, caro leitor talvez me pergunte; E aqueles que nunca se mudam? Eu sei que há, e são muitos, mas continuo a acreditar que somos todos andarilhos, quem não o é no mundo, certamente o é em seus próprios pensamentos.

O autor, Marco Vinício Pereira do Espírito Santo, é—com muito orgulho—natural de Canguçu. Cresceu pescando lambaris e comendo guabijus nas encostas das sangas do Faxinal. Depois se mudou, em Pelotas fez graduação em Filosofia, outra em História e um mestrado em Filosofia. Atualmente faz graduação em Psicologia, pela Universidade Federal de Pelotas.

SOBRE O AUTOR
O autor do texto, Marco Vinício Pereira do Espírito santo, é natural de Canguçu, fez graduação em Filosofia, História e depois um mestrado em Filosofia. Hoje faz graduação emPsicologia, pela Universidade Federal de Pelotas (UFPel).