Geisa Coelho: O relógio é o senhor da era moderna
Eu viajava entre Canguçu e Pelotas quando duas senhoras sentadas atrás da minha poltrona reclamavam corriqueiramente do tempo que havia esfriado. Como eu precisava de silêncio para ler, troquei de poltrona. Outra vez ouvi a mesma reclamação. Agora de um simpático senhor que, ao embarcar no ônibus, sentou ao meu lado e comentou: “Mas tá […]
Eu viajava entre Canguçu e Pelotas quando duas senhoras sentadas atrás da minha poltrona reclamavam corriqueiramente do tempo que havia esfriado. Como eu precisava de silêncio para ler, troquei de poltrona. Outra vez ouvi a mesma reclamação. Agora de um simpático senhor que, ao embarcar no ônibus, sentou ao meu lado e comentou: “Mas tá bem frio hoje, né? E esfriou de repente!”.
É claro que tudo não passou de uma simpática gentileza do passageiro e que ele apenas exercia a função fática da linguagem: atrair minha atenção para, quem sabe, tornar o momento menos tedioso. Mas, bah… “justo pra mim que adoro o frio!”, reclamei mentalmente.
Foi aí que pensei: reclamamos dos dias curtos e frios do inverno, dos dias cansativos, longos e quentes do verão (meu caso), da umidade da primavera, do tempo curto pra tantas atividades diárias, e de tudo mais que incomoda nossa “real” existência.
Conta-se que durante a Idade Média, os camponeses trabalhavam cantando sem preocupações com o tempo. Só no século 19, o trabalho foi separado da diversão, provavelmente devido ao processo de mecanização, aos vínculos empregatícios. Desde então, o relógio passou a ser o nosso “Senhor”. É ele que pressiona o homem moderno. É ele que impõe medos: de não acordar, de atrasar, de perder o transporte, de perder a oportunidade ou o emprego.
Inicialmente, a divisão do tempo era necessária aos monges beneditinos. Bento de Núrsia, um deles, criou um conjunto de normas muito rígidas, conhecido como “Regras de São Bento”. Elas foram necessárias para que dessem conta do trabalho e da rígida disciplina moral e religiosa nas abadias: meditar 5 vezes ao dia, manter os mosteiros produção de alimentos demandava rotina, organização e divisão do dia e da noite.
Eu até imagino os monges há 2 mil anos levantando nas madrugadas frias, rezando por uma hora e voltando a dormir. Imagino a tuberculose e outras doenças e pestes e epidemias, tudo sendo “resolvida” a “força” de meditação; mas não os imagino hoje, vivendo a pressão do próprio claustro, ainda que sem ócio, sem lazer, mas cercados de pessoas com seus Androides e Smartphones, conectadas à rede Wifi, sem ouvir e sem dialogar, embora algumas delas, sem nenhuma perspectiva ou projeto de envolvimento com os problemas comuns da vida, saiba reclamar muito.
Nossas reclamações seriam uma tentativa de driblar a necessidade de empreender um esforço tal que nos afastasse do estado de alienação útil ao “bem viver” individual e social do homem moderno que cede a cada minuto aos caprichos do novo ”Senhor”de escravos chamado tempo?