Coluna Dom Jacinto Bergmann: Os chamados do amor
Pandemia: convite para um outro espírito Antes da irrupção da pandemia da Covid-19 a humanidade estava andando a passos largos ao encontro, e, sensivelmente, com um espírito próprio da “serpente” bíblica presente desde a origem da história humana. Esse espírito caracteriza-se pelo “espírito bom para comer”, pelo “espírito agradável aos olhos” e pelo “espírito desejável […]
Pandemia: convite para um outro espírito
Antes da irrupção da pandemia da Covid-19 a humanidade estava andando a passos largos ao encontro, e, sensivelmente, com um espírito próprio da “serpente” bíblica presente desde a origem da história humana. Esse espírito caracteriza-se pelo “espírito bom para comer”, pelo “espírito agradável aos olhos” e pelo “espírito desejável por dar entendimento” (Livro do Gênesis, 3).
Em palavras nossas atuais: É o espírito do “acúmulo” – apenas ter mais, é o espírito da “aparência” – apenas aproveitar-se mais e o espírito da “intelectoidade” (neologismo criado para mostrar o carácter de confiança absoluta na capacidade intelectual egocêntrica) – apenas poder mais.
Esse “espírito da serpente” cunhou entre nós um marketing próprio expresso num dito comum: “Quem tem mais, pode mais e chora menos”. Transparece exatamente nesse dito a idolatria do acúmulo – somente ter, a idolatria da aparência – somente aproveitar-se e a idolatria da intelectoidade – somente poder.
Um segundo dito comum consequente foi cunhado: “Cada um por si, e Deus por ninguém” (no original do dito estava na segunda parte “Deus por todos”; foi preciso corrigir esta parte para “Deus por ninguém”, uma vez que quando cada um é para si, cada qual ocupa o lugar de Deus, e isso significa que “Deus é por ninguém”).
O “espírito da serpente” provocou a idolatria do ter, do aproveitar-se e do poder. Claro, essa idolatria levou para um individualismo extremo, claramente explicável pelo fato da sílaba “eu” ser tirado da palavra “Deus”, cortando a letra inicial “d” (própria de Deus porque é sua doação) e a final “s” (também própria de Deus porque é seu sacrifício). Sem o “d” da doação e sem o “s” do sacrifício sobra apenas o “eu” egoísta e o “eu” narciso. Não se tem mais adoração a Deus e instaura-se a idolatria do eu. Consequentemente desaparece também a doação pelo outro e o sacrifício (facere – “fazer” + sacer – “sagrado”) pelo outro.
A idolatria do “eu” germinou um espírito de liquidez – “espírito bom para comer”, um espírito de facilidade – “espírito agradável aos olhos” e um espírito de egocentrismo – “espírito desejável por dar entendimento”.
A pandemia veio e precisou solidez, apresentou dificuldade e exigiu alteridade, necessitando de um outro espírito. Um espírito que recupere o “paraíso perdido” por causa do “espírito da serpente”. A humanidade não foi feita para apenas o que é “bom para comer”, o que é “agradável aos olhos” e o que é “desejável por dar entendimento”. Ela, sim, foi criada para ser “imagem e semelhança de Deus”.
Ela foi animada pelo “ruah de Deus” (ruah, em hebraico propriamente significa “espírito”) soprado por Deus nas suas narinas. É o espírito do SER e não apenas do ter, é o espírito do AMAR e não apenas do aproveitar-se, é o espírito do SERVIR e não apenas do poder. A humanidade não tem direito de ficar só com o “eu”: o “eu” que está dentro de “Deus”. Não fomos feitos para idolatrar o “eu”, mas para adorar a “Deus”. Somente o “eu” em/com “Deus” ganha solidez, fortalece-se com a dificuldade e abre-se para a alteridade.
O “espírito da serpente” substitui o “ruah de Deus”. Com isso inaugurou-se a “lógica de Caim”: a do “quem tem mais, pode mais, chora menos”. Mas essa lógica, infelizmente, acaba em homicídio, fratricídio e cosmicídio. Urge a decisiva necessidade de uma revolução do “ruah de Deus”. É hora de interromper com a lógica de Caim – do interesse e da morte – para abraçar novamente a lógica de Abel – da gratuidade e da vida.
É hora de cessar em escutar a voz astuta do “espírito da serpente” e abrir os ouvidos para escutar a voz eterna do “ruah de Deus”. A pandemia, assim, torna-se um convite para voltarmos para a lógica de Abel acolhendo o “ruah de Deus” e eliminarmos corajosamente a lógica do Caim acolhendo o “espírito da serpente”. O Caim da morte deve dar lugar ao Abel da vida.
O espírito da serpente do Caim da morte, que constrói torres de Babel, deve ser constantemente derrubado. O ruah de Deus do Abel da vida, que cria Pentecostes, deve ser constantemente vitorioso. De um lado a pandemia está escancarando o espírito da serpente do Caim da morte. De outro lado a pandemia está desejando o ruah de Deus do Abel da vida. Os irmãos e irmãs que creem em Cristo, todos são convidados para celebrarem o ruah de Deus do Abel da vida neste domingo de Pentecostes.
E os homens e mulheres de boa vontade, todos são convidados para abraçarem um outro espírito que não é o espírito da serpente do Caim neste tempo de pandemia. Todos nós, seres humanos, precisamos de um outro espírito, do ruah de Deus, do Espírito Santo. Somente com ele, “como vento forte e língua de fogo” (At. 2), criaremos uma nova civilização do amor com e após esta pandemia. Não podemos deixar de lado este convite para um outro espírito!
Dom Jacinto Bergmann, Arcebispo Metropolitano da Igreja Católica de Pelotas.