Canguçu, sexta-feira, 22 de novembro de 2024
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Dom Jacinto Bergmann: “cebola” ou “batata”?

Por que a humanidade de hoje gosta mais da “cebola” do que da “batata”? A pergunta é um tanto inusitada. Mas ela acaba por colocar-nos perante nossa realidade de forma bastante profunda. Ela pode ser feita numa cozinha por uma criança que está descobrindo o mundo, mas, pode ser proferida por pensadores nas suas reflexões. […]


Por que a humanidade de hoje gosta mais da “cebola” do que da “batata”? A pergunta é um tanto inusitada. Mas ela acaba por colocar-nos perante nossa realidade de forma bastante profunda. Ela pode ser feita numa cozinha por uma criança que está descobrindo o mundo, mas, pode ser proferida por pensadores nas suas reflexões.

A nossa história humana é uma “cebola” ou uma “batata”? A cebola contém cascas ininterruptas até o seu fim. Descascou-a e nada de “algo interior”. A batata apresenta uma casca e já se chegou ao seu cerne. Descascou-a e saboreamos o “seu interior”.

As pessoas humanas que vão na linha da “cebola”, podem ser representadas pelo filósofo existencialista, Nietzsche. Ele afirmava que “tudo é interpretação”, isto é, não há um núcleo de Ser sustentando a nossa experiência de vida. Tudo são “cascas de cebola”: modos de ver, interpretações, perspectivas. Para além disso não há mais nada.

Os que vão na linha da “batata”, são todos os pensadores com visão cristã de humanidade. Eles defendem que, mesmo escondida por uma crosta, existe uma realidade que é substanciosa e vital.
Como nós nos colocamos diante da “cebola” e da “batata”? A verdade é que, mesmo sabendo que a vida humana é uma “batata”, nós a vivemos, muitas vezes, como se fosse uma “cebola”. Vivemos de opiniões de verdades parciais e provisórias, de paixões imediatas; vivemos aparências e modas como se a vida humana fosse isso.

Esgotamo-nos desfilando cascas e camadas sem um centro que nos dê realmente acesso ao pleno sentido. Há uma escritora contemporânea, Susan Sontag, que diz que a nossa existência humana fica como que “sequestrada” neste sem-fim de interpretações que nos distraem da viagem essencial.

Não habitamos em nós próprios, levados por ideias, pontos de vista, absolutizações das circunstâncias, cascas e mais cascas. Segundo ela, o mais urgente seria apurar, aprofundar e afinar os nossos sentidos mais profundos e existenciais, aprendendo a ver melhor, a sentir melhor, a escutar melhor.

Segundo estudiosos atuais do ser humano é preciso, justamente, “trabalhar” à atenção. Ela, a atenção, é o grande desafio, que outra coisa não é que, confiadamente, ver melhor, sentir melhor, escutar melhor o que Deus revela em nós: sermos “sua imagem e semelhança” (cf. Gn 1).

A “cebola” só faz ver, sentir e escutar cascas. A “batata” faz ver, sentir e escutar a beleza interior, essa que o grande Santo Agostinho coloca nas suas Confissões: “Tarde te amei, beleza tão antiga e tão nova, tarde te amei… Tu estavas comigo e eu não estava contigo” (Confissões X, XXVII).

Dom Jacinto Bergmann, Arcebispo Metropolitano da Igreja Católica de Pelotas.