Relatos: violência doméstica em Canguçu
As leis brasileiras são tidas como objetos de esperança para as mulheres que vivem situações de privação da liberdade. Carmen (nome fictício) tem 63 anos, e conta que aos 15 anos, engravidou de uma pessoa violenta, um homem com quem precisou casar e por diversas vezes se sentiu em situações de ameaças extremas. “Engravidei de […]
As leis brasileiras são tidas como objetos de esperança para as mulheres que vivem situações de privação da liberdade. Carmen (nome fictício) tem 63 anos, e conta que aos 15 anos, engravidou de uma pessoa violenta, um homem com quem precisou casar e por diversas vezes se sentiu em situações de ameaças extremas.
“Engravidei de uma pessoa extremamente violenta, quando eu estava com 7 meses de gravidez, ele sumiu e voltou aos 8 meses. Tive que parar de estudar porque um colega meu levantou meu ponche e mostrou a minha barriga, naquela época, grávida solteira não estudava”, isso porque antes da constituição de 1988, o divórcio ainda não era permitido para mulheres “fiquei sem estudar por 22 anos, num casamento terrível” recorda.
Ela conta que a relação violenta e os abusos sofridos estão presentes até os dias atuais em sua vida “se eu não lavar a cabeça não consigo me pentear, tenho muitos cortes na cabeça, passei por uma série de coisas”, mas ainda assim vê a união com um lado positivo “um casamento em que a única coisa boa que trouxe foram os meus filhos”.
Carmem conta que, por medo, precisou esconder o espancamento dos pais e, durante uma das tentativas de denunciar o agressor com quem era casada, estava com cortes na cabeça e havia feito pontos, escutou de um dos agentes da delegacia “o que você fez para ele?”, o homem para quem foi pedir ajuda fez a pergunta de forma a ignorar suas marcas pelo corpo. Mas ainda na ocasião, recebeu apoio do inspetor de polícia que a acompanhou até sua casa para retirar seus pertences.
Cerca de 30 anos depois da primeira tentativa de Carmem em se divorciar, já foram implementadas diferentes ações contra a violência no país. As mulheres passaram a ocupar espaços que não tinham acesso e conhecer seus próprios direitos, mas ainda há muito o que se fazer.
De acordo com dados da Secretaria Estadual da Segurança Pública, durante o primeiro ano de pandemia, em 2020, o município gaúcho registrou aumento em diversos crimes contra as mulheres. Das vítimas que recorreram à justiça para realizarem suas denúncias, em Canguçu, foram contabilizadas 44 ameaças, 30 lesões corporais e oito casos de estupro. Além disso, no estado, 33.392 mulheres sofreram ameaças, 18.944 tiveram lesões corporais e 1.908 foram estupradas.
Maternidade, independência financeira e família
“Vim ao mundo como um exemplo, faltava descobrir de que, hoje sei que vim para ser mãe”, ela conta que seu maior sonho era ver os filhos serem quem são: honestos e trabalhadores. Mãe de três filhos, uma menina e dois meninos, Carmem recorda que seus pais sempre dividiram as tarefas domésticas de forma igualitária e para ela, era importante manter essa forma de educação com os filhos.
Antes de sua separação, passou por momentos tensos que não atingiram somente ela “ele quis bater na nossa filha porque havia caído sangue na geladeira, eu estava com a perna quebrada e não poderia me mexer”. Pensando em defender os filhos e em sua independência financeira, Carmem decidiu empreender “comecei a vender rapadura, com a ajuda dos meus filhos, entregava em mais de 30 restaurantes da cidade”.
Quando finalmente conseguiu se desquitar, após entrar em vigor a constituição de 1988, sofreu com os olhares da sociedade devido a sua condição civil. “Eu estava num evento de casamento e as pessoas me olhavam com medo, enquanto dançavam”.
Aos 31 anos, divorciada e com os três filhos menores, adotou posturas de distanciamento para que não fosse assediada durante suas vendas comerciais “passei a impor um limite, chamava os clientes como ‘meu filho’ ” para que “as pessoa não fossem me procurar como mulher”, depois deste relacionamento, com o pai de seus filhos, Carmem nunca mais quis se casar.
A igualdade entre meninos e meninas
A vendedora Carmem sempre teve fascínio por perfumes, já recebeu diversas propostas de trabalho, mas se manteve no ramo do comércio por ser apaixonada por gente. “Sonhava em ser psiquiatra, mudei para administração de empresas, fiz pós em gestão de pessoas, sonho em fazer outra pós em história da arte, mas quero esperar passar a pandemia para fazer de forma presencial”.
Ela que admirava o relacionamento de companheirismo e união dos pais, acabou não constituindo relações depois de ter passado pelo casamento que gerou seus filhos. Perguntada sobre a batalha que resume sua vida, Carmem relatou que sempre teve como prioridade os filhos. Acredita que os educou conforme sonhava, ambos estudaram e têm suas profissões. Ela que cursou uma faculdade depois dos filhos adultos, tem esperanças em um mundo melhor:
“Sonho com a igualdade entre meninos e meninas, um país mais justo”, conta.
Reportagem por jornalista Liziane Stoelben